Brasil – Abandonados à própria sorte: assim se veem em relação às empresas de aplicativo entregadores acidentados que conversaram com à imprensa. A vulnerabilidade da categoria se torna ainda maior sob a pandemia do novo coronavírus. Hoje, estes profissionais trabalham mais e ganham menos – reflexo do aumento do número dos que recorreram à atividade nos últimos meses. Além disso, não são assegurados pelos dias de trabalho após acidentes e tiram do próprio bolso o dinheiro para se protegerem da covid-19 durante o trabalho. Dois deles – Mumu e Jefferson – se acidentaram recentemente e até agora não receberam qualquer auxílio financeiro ou apoio das companhias para as quais prestavam serviço.

Pais de família, ambos contavam com os rendimentos das mais de dez horas diárias de expediente para sustentar suas famílias. Impedidos temporariamente de trabalhar e sentindo-se ignorados pelos empregadores, dependem agora de vaquinhas virtuais de amigos e familiares. 

Douglas De Paula Vales, o Mumu, de Niterói (RJ), quebrou a bacia enquanto trabalhava para a iFood e não sabe quando poderá voltar a pilotar para garantir o salário. Jefferson, de São Paulo (SP), se frustrou ao receber da Uber Eats o desconto em seu pagamento pelo pedido não entregue na noite do acidente.

As histórias de Mumu e Jefferson se somam às de outros entregadores acidentados e sem direitos, além da precariedade enfrentada por todos os profissionais da categoria, que paralisaram suas atividades novamente em diversas capitais do Brasil no último sábado (25).

Segundo estudo da Remir Trabalho (Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista), da Unicamp, os entregadores passaram a trabalhar mais durante a pandemia do novo coronavírus e mesmo assim perderam renda, além da exposição à contaminação. O levantamento ouviu trabalhadores em 26 cidades brasileiras e apontou que 56,7% dos entregadores têm uma jornada de nove horas ou mais e que 52% trabalham agora nos sete dias da semana. A remuneração, porém, diminuiu 60%, em média, após reduções das taxas e dos bônus.

Flavio Batista, professor de direito do trabalho da USP, aponta que existe vínculo entre entregadores e aplicativos, embora os trabalhadores sejam observados como autônomos e empreendedores. “Eles devem ser considerados empregados dos aplicativos”, diz. 

Nos casos de Jefferson e Mumu, ambos podem procurar por direitos na Justiça, avalia Batista: “para ter chance de indenização, precisaria entrar na Justiça do Trabalho pleiteando vínculo de emprego. Se for considerado empregado, a empresa responde. Do contrário, não”.

“Me acidentei feio e ainda descontaram meu pedido”Jefferson Nascimento

Após o acidente, Jefferson teve marcas de coágulo sanguíneo na perna

Após o acidente, Jefferson teve marcas de coágulo sanguíneo na perna

Arquivo pessoal

Pai de Bernardo e Emillyn, Jefferson Nascimento, de 40 anos, trabalhava para a Uber Eats há três anos, desde que o aplicativo chegou a São Paulo, onde reside. Ele já soma mais de 4.500 entregas pela empresa e tem altíssima taxa de avaliação.

Como outros colegas de função, ele relata que, quando o motoboy ou biker fica um dia ou mais sem trabalhar, passa a receber cada vez menos pedidos do aplicativo. Em termos práticos, é excluído.

Foi o que ocorreu em 7 de julho, depois de passar três dias cuidando do filho que estava doente. Após dez horas de espera e apenas três pedidos desde a manhã, recebeu o quarto às 23h40 e, a caminho da residência do cliente, foi atropelado por um motorista que não prestou socorro.

“Fiquei desorientado, só via os flashes dos carros passando a mais de 100 km por hora. Fui me rastejando até o acostamento, onde fiquei por 10 minutos até dois anjos passarem ali, me jogarem na caçamba e me levarem pro hospital”, relata Jefferson.

Emocionado, o motoboy relata que chegou ao hospital ensanguentado e com dificuldades para respirar, mas que houve tempo hábil para ser atendido e tratado. O entregador conta que relatou à Uber Eats naquela noite, no pedido, que sofreu o acidente. A frustrante resposta oficial veio três dias depois.

“Veio só a mensagem no celular que o valor do pedido foi descontado. Me senti um ser humano inválido, depois de trabalhar três anos com eles. Me acidentei feio e ainda descontaram meu pedido”, lamenta.

O único auxílio oferecido foi um seguro para os remédios, que, no entanto, não lhe seria tão útil: como boa parte dos medicamentos já havia sido oferecida pelo posto de saúde e o restante – pouco acima de R$ 100 – foi comprado por amigos, ele não cogita ir até as farmácias e pedir por notas para reaver o valor.

Jefferson relata que tentou novo contato com a empresa, mas não recebeu mais respostas, e que contou com a ajuda de familiares e amigos, que têm doado dinheiro por meio de uma vaquinha virtual.

“Minha rotina desde o acidente é difícil. Minha mãe tem me ajudado. Os primeiros 14 dias foram bem complicados. Principalmente os 10 primeiros, porque eu não conseguia me virar por tanta dor. Estava tomando morfina todos os dias no hospital para poder dormir. Minha família e meus amigos estão me ajudando em tudo. Eles estão ajudando a comprar uma motinha para mim, para o quanto antes eu poder voltar a trabalhar”, relata ele, com a voz embargada.

Procurada, a Uber lamentou o acidente com Jefferson, e disse que os entregadores são cobertos por um seguro da Uber “para acidentes pessoais desde o momento em que aceitam uma solicitação para buscar um pedido até o momento da entrega para o usuário”. A cobrança gerada pelo pedido foi feita de forma indevida e o valor já foi devolvido, segundo a empresa, que pediu desculpas pelo ocorrido na nota oficial. “Nem para conversar comigo e saber como estou eles me ligam. É como se eu fosse nada. Só mais um pra estatística”, comentou Jefferson.

Os seguros informados no site da Uber são de R$ 100 mil para morte acidental, de até R$ 100 mil para invalidez permanente ou parcial por acidente e de até R$ 15 mil de reembolso para despesas médicas hospitalares e odontológicas. Como foi atendido em hospital público, Jefferson teria no valor dos remédios o único auxílio possível pelo aplicativo.

Mesmo com o coágulo de sangue na perna, o motoboy já tentou voltar ao trabalho, realizando corridas na segunda-feira (27), mas relata que teve em sua conta uma espécie de ‘bloqueio velado’, no qual a conta permanece ativa mas não recebe chamadas – as chamadas pararam de aparecer,segundo ele, horas depois do segundo contato da reportagem com a Uber. Este bloqueio é uma das queixas relatadas por entregadores de aplicativo que se manifestaram ao longo de julho. “Estou totalmente perdido. Preciso voltar a trabalhar e pagar a pensão dos meus filhos”, comenta o entregador.

Contatada, a Uber negou o tipo de bloqueio e disse que a situação de Jefferson está normalizada no aplicativo, caso ele retorne às atividades. Perguntada sobre uma possível revisão dos seguros, a empresa afirmou apenas que esta forma de seguro é a mesma para todas as empresas de aplicativo, e que a seguradora já iniciou o contato com o entregador.Dão as costas pra você, te tratam como lixoDouglas de Paula Vales

Mumu teve de ser carregado por uma maca improvisada para voltar à sua casa

Mumu teve de ser carregado por uma maca improvisada para voltar à sua casa

Douglas de Paula Vales, 37, conhecido em Niterói como Mumu, vive semanas de apreensão e medo. Ele sustentava a família trabalhando mais de 11 horas por dia para a iFood. Pai de Raynne, um garoto de 12 anos, espera a chegada do segundo filho, no oitavo mês de uma gestação de risco de Fabiolla, sua esposa.

Fabiolla costumava pedir para que não trabalhasse por tanto tempo, mas, por necessidade, o marido manteve a rotina durante a pandemia do novo coronavírus.

Em 13 de julho passado, dez dias após seu aniversário, Mumu se acidentou a caminho de uma entrega, bateu o rosto no para-brisas de um carro e ainda fraturou a bacia. O próprio cliente que aguardava o pedido viu o acidente e relatou o episódio ao aplicativo, prestando socorro ao entregador. “Quando tentei me mover, não conseguia virar o corpo. Eu estava com muita dor na bacia, na pélvis e nas costas”, relata.

Há cinco meses dedicado à iFood, relata que o aplicativo não o ajudou em nada. Seu vizinho fez a ligação para o serviço de atendimentos da empresa, e descobriu que a única cobertura possível, em seu caso, seria se o motoboy tivesse sido atendido por um médico particular – no entanto, já havia sido atendido dias antes pelo SUS.

Mumu se acidentou em 13 de julho

Mumu se acidentou em 13 de julho

“O aplicativo deu as costas pra mim. Tratado que nem lixo, cara. É muita sacanagem. O suporte da iFood só disse que poderia dar assistência se fosse óbito ou se eu me tratasse por hospital particular”, conta ele, que guardou o áudio da ligação do amigo em que recebeu a informação.

“Se não são meus amigos para fazer a vaquinha, estaria complicado”, diz, enquanto aguarda ansioso a recuperação da bacia quebrada.

Ao longo de uma semana, a reportagem tentou contato com a iFood em três oportunidades para falar sobre o caso de Mumu. Mas, não houve resposta até o fechamento deste texto.

Em seu site, a empresa informa que oferece seguro de R$ 1.000 até R$ 15 mil para consulta médica ou atendimento emergencial e de urgência; curativos, suturas e gesso em caso de quebra de ossos ou luxação; exames como radiografia ou ressonância; assistência odontológica emergencial; e cirurgias resultantes do acidente. Para mortes acidentais ou casos de invalidez, os valores são iguais aos da Uber.